Certa vez marquei uma consulta médica. Era um local muito concorrido e eu aguardei 3 meses pelo atendimento. Quando cheguei ao consultório, descobri que por uma falha no sistema, meu horário havia sido desmarcado e eu não tinha sido avisada.
Dá para imaginar como isso me impactou negativamente, não é?
Eu estava com necessidades cuidado, saúde, respeito, consideração e previsibilidade não atendidas, o que desencadeou uma serie de emoções carregadas e dolorosas. Apesar de estar transbordando toda essa tensão, consegui negociar um atendimento de encaixe. Ao perceber meu incômodo e o impacto negativo dessa falha, uma outra médica que estava passando pela recepção veio conversar comigo para me “explicar” o que tinha acontecido e me “acolher”.
Ela me falou durante algumas dezenas de minutos como eles eram bons, importantes, coerentes, o trabalho maravilhoso que faziam com mulheres, como eles estavam com alguns desafios administrativos, etc., etc., etc., tudo que eu já sabia, afinal foi isso que me motivou a me consultar lá.
Apesar da proposta delas ser realmente muito boa, naquele momento não era o que eu experimentava, eu estava com zero espaço de escuta para quem ou o que elas faziam, eu só queria que minha dor e meu incomodo fossem ouvidos e reconhecidos, que tivessem espaço para existir. É algo fisiológico, frente a uma emoção muito intensa, por mais treinados que estejamos em escutar, nosso espaço de escuta se reduz porque nossa energia está sendo direcionada para a autorregulação do organismo.
Eu esperei que ela acabasse de falar, na esperança de que após isso eu também pudesse ser ouvida, mas infelizmente não foi o que aconteceu. Naquele momento, apesar da minha dor, eu consegui ter o distanciamento necessário para reconhecer que a pessoa que interagiu comigo também tinha sido impactada negativamente pela falha, provavelmente estava frustrada, triste, ansiosa, com medo e consequentemente também estava com uma necessidade grande de escuta. Eu também pude reconhecer a boa intenção dela, por ter me visto e me dado atenção da forma como ela sabia fazer naquele momento, mas o que ela fez foi falar, não foi escutar.
Veja a ironia da situação: eu que precisava de escuta acabei ouvindo, mas se eu quisesse brigar, disputar qual de nós duas seria escutada, seria um prato cheio para um conflito ainda mais grave.
Esse é um ponto que frequentemente bloqueia a comunicação: ACREDITAMOS QUE ESTAMOS ESCUTANDO, MAS NA VERDADE ESTAMOS FALANDO.
Nossa cultura valoriza o expressar mas não valoriza da mesma forma o escutar e o que consequentemente acontece é que não temos consciência de como escutar, nem de como estamos escutando, pois escutar não é simplesmente um ato passivo, requer um estado de presença, abertura e atenção que é construído a base de treino tanto quanto a habilidade em argumentar.
Em uma situação de conflito, quando ambas as pessoas estão com dor e tensão e precisam de escuta, se nenhuma delas tem essa habilidade desenvolvida, o que acontece frequentemente é essa disputa por espaço de fala, mas como todos falam e ninguém escuta, o tom de voz se altera e se eleva...quem sabe assim o outro consiga ouvir...
Além da habilidade de escutar, um fator importante é saber reconhecer também quando estamos ou não com esse espaço de escuta disponível o suficiente para acolher a fala do outro. E tudo bem se não estivermos, como eu disse lá em cima, isso é fisiológico, nem sempre vamos estar disponíveis. Quando estamos em uma situação de tensão muito grande, nosso cérebro primitivo é acionado e começa operar no “modo sobrevivência”, então, dificilmente vamos conseguir dar outra resposta que não seja lutar, fugir ou congelar.
Domminic Barter, um famoso facilitador de CNV tem uma frase bem didática e curiosa a respeito desse fato: diante de uma conversa difícil, ambos os envolvidos precisam de escuta e acolhimento, mas tragicamente, apesar de o mundo ter 7 bilhões de seres humanos, eles insistem em receber isso da pessoa com quem eles estão em conflito e infelizmente, ESSA É A ÚNICA PESSOA DO MUNDO QUE NÃO PODE LHES OFERECER A ESCUTA QUE ELES PRECISAM.
Assim, quando você perceber que está com necessidade grande de escuta e acolhimento e que a pessoa com quem você está em conflito também está com a mesma necessidade, no mesmo momento, o melhor a fazer é procurar uma alternativa, como diria o Dominic, entre os outros 7 bilhões de seres humanos que habitam a terra.
Quem poderia te ouvir e te acolher? Sua melhor amiga? Sua mãe? Seu irmão? Seu terapeuta?
Você pode buscar esse momento de escuta e acolhimento com alguém que de fato possa te oferecer isso com qualidade, até que sua necessidade seja atendida, você tenha clareza do que sente, do que precisa, do que pode pedir para o outro. Aí depois desse momento em que as emoções mais intensas tiveram espaço para darem sua mensagem e o fluxo da criatividade e da escuta voltarem a se estabelecer, você pode voltar à conversa conflituosa com mais qualidade.
Hoje eu te convido a refletir sobre o que você pode fazer para conhecer e cultivar a sua habilidade de escutar.
Marina De Martino
Facilitadora de grupos de Comunicação Não-Violenta e Justiça Restaurativa
Saiba mais sobre a Comunicação Não-Violenta em minhas páginas
Facebook e Instagram - Marina De Martino CNV
Site - www.comunicacaoecooperação
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