Um dos trabalhos que eu mais gostava de fazer na Comunidade Dedo Verde (casa/empresa compartilhada que criei e onde morei e trabalhei durante 6 anos) era cozinhar para os retiros e eventos que aconteciam lá, aprendi muito com a experiência prática sobre culinária vegana e sem glúten, sobre como administrar e gerenciar o fluxo de trabalho, pessoas e alimentos em eventos grandes, em que cozinhávamos para 30 pessoas durante uma semana, fazendo café da manhã, lanches, almoço e jantar...Era uma loucura, mas eu adorava!
Aconteceu que em um dado momento, eu fiquei fora viajando por quase dois meses e quando voltei, havia uma pessoa nova morando na casa e eu não tinha me alinhado muito com ela até então... eu tinha a sensação de haver um estranho no ninho e para piorar, nas semanas seguintes teríamos um retiro desses grandes e ela dividiria o serviço da cozinha comigo.
Nós não nos entendíamos, ela estava insegura, tentando fazer o melhor que podia no trabalho da cozinha e nas relações, ainda sem entender direito como a estrutura da casa funcionava e eu estava profundamente incomodada com a mudança repentina, com uma pessoa estranha que por não estar ainda completamente integrada nas rotinas da casa não cumpria os acordos completamente ou “criava” novas regras aleatórias sem que isso passasse por uma reunião e aprovação dos demais membros.
Aí aconteceu que uma noite antes de dormir ela guardou castanhas em uma assadeira dentro do forno, bem no fundo, para torrar no dia seguinte, eu não sabia que essa assadeira estava no forno (o forno era grande, industrial), no dia seguinte, de manhã bem cedo, coloquei pão para assar para o café da manhã e as castanhas que eu não tinha visto que estavam lá começaram a queimar.
Eu não sabia o que fazer, se acordava ela para falar que as castanhas tinham queimado, se escrevia um bilhete... tudo estava tão tenso e confuso que qualquer coisa poderia ser motivo para mais confusão.
Eu decidi esperar ela acordar e falar pessoalmente. Enquanto isso, fui meditar. Foi o tempo de ela descer e ver as castanhas queimadas antes que eu pudesse contar o que aconteceu. Ela entrou abruptamente na sala em que eu meditava, me tirando do estado meditativo aos gritos...para mim foi um grande susto seguido de uma descarga de raiva muito intensa, sem que eu estivesse preparada para receber tudo aquilo.
Então, não é preciso muito esforço para imaginar que eu que já estava incomodada antes, agora com o susto e mais conflitos adicionais, queria matá-la.
Quando estamos diante de uma situação ameaçadora, nosso cérebro reage em modo sobrevivência: lutar, fugir ou congelar. Na hora do pico de tensão dificilmente vamos conseguir responder de alguma forma diferente dessas 3 opções. Nesses momentos, o melhor a fazer é se afastar, buscar escuta e acolhimento com alguém que não está envolvido no conflito.
Eu espumava de raiva, uma raiva incontrolável. Eu já conhecia a Comunicação Não-Violenta e por sorte recebi uma escuta de muita qualidade naquele momento, em que eu pude entrar em contato com as reais raízes do que eu sentia.
Entendi naquele momento que por trás da minha raiva, tinha um profunda, profunda tristeza, por ter prejudicado o trabalho dela queimando as castanhas, por aquela relação difícil dentro da minha própria casa, da qual eu não podia escolher sair ou me afastar. Eu sentia uma fragilidade tão grande que era muito ameaçador até admitir isso para mim mesma, eu tinha medo de ser esmagada pela agressividade dela e pelas circunstancias que eu não podia controlar e para lidar com essa fragilidade, eu me revestia inconscientemente dessa raiva tão intensa, que era uma forma de proteger algo muito sensível e doloroso que estava ferido e sangrava dentro de mim.
Para lidar com situações de raiva e tensão, eu gosto muito de um exercício que o facilitador de Comunicação Não-Violenta David Shindoll apesentou certa vez:
Ele pedia para que imaginássemos uma situação em que precisamos nos aproximar de um animalzinho agressivo e assustado...
Como você tentaria essa aproximação? Você chegaria gritando ou ameaçando? Certamente que não. O mais sensato seria falar com suavidade, andar devagar, se aproxima lentamente, oferecer primeiro a mão para ele cheirar, depois tentar um contato corporal mais longo e conforme vai percebendo a abertura e confiança dele vai se aproximando mais.
Podemos usar essa habilidade que intuitivamente temos ao lidar com um animalzinho assustado e medroso também com a gente mesmo, quando realizamos o processo de autoempatia (identificar em nosso diálogo interno o que sentimos e do que precisamos) e no processo de empatia com as pessoas com quem convivemos, afinal diante de um conflito, nosso cérebro primitivo nos leva a reagir exatamente como um bichinho reagiria.
De que pessoas ou situações você tem raiva hoje? Você consegue identificar medo, tristeza e fragilidade por trás da raiva que você sente? Que necessidades a sua raiva tenta proteger e cuidar?
Marina De Martino
Facilitadora e círculos de Comunicação Não-Violenta e Justiça Restautativa
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