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Foto do escritorMarina De Martino

Uma falha grave que revitimiza pacientes e põe a perder processos terapêuticos

Julia se encontrava presa em um relacionamento-armadilha: ele era bonito, popular, sensível, tinha interesses parecidos com os dela, dons artísticos etc., parecia o homem ideal e dava muitos sinais de estar interessado, mas nada se concretizava. Hoje, observando a situação com distanciamento, ela percebe com clareza que ele também dava os mesmos sinais para outras mulheres, criando expectativas em várias delas e eventualmente escolhendo uma ou outra e logo descartando.


Mas naquela época, confusa com essa situação, ela foi em uma consulta terapêutica com um desses “gurus” que se dizia curador, que tinha visões, etc. Contou para ele sobre a desgraça que era sua vida amorosa (ela já tinha um histórico de relacionamentos bem doloridos) e como se sentia em sofrimento e culpada por conta da ambiguidade do comportamento do tal rapaz, ela se perguntava se estava fazendo algo de errado, que o "afastava".


O “guru” disse que ela estava “presa” a essa situação porque na realidade estava atraída pelo poder e popularidade que o tal “alecrim dourado” possuía e também fez algumas correlações com a relação dela com pai: de acordo com sua teoria, havia um acordo kármico-espiritual que ela fez com o próprio pai, imaturo e ausente como a maioria dos pais dentro do patriarcado. De acordo com sua “visão”, o pai de Júlia teria a função de conecta-la com o poder pessoal dela, sendo que “o que ele não fez” ela teve que buscar sozinha, desenvolvendo potenciais, se esforçando e acreditando em si mesma.


Naquela época, Júlia não conhecia a dinâmica da “prateleira amorosa” (termo criado por Valeska Zanello, que descreve minuciosamente o que ela estava vivenciando), ela estava muito fragilizada, carente, iludida com as migalhas de afeto e atenção que o rapaz lhe dava (escassez de afeto é uma estratégia da masculinidade tóxica para controlar mulheres, aquilo que é escasso, tem maios valor e assim, é possível exercer poder facilmente sobre alguém que deseja ardentemente ser amada e que tem sua autoestima associada a ser escolhida por um homem). Também não conhecia as questões relacionadas à socialização masculina, infantilização, “brotheragem” (homens protegendo uns aos outros), etc.


Se olharmos com mais cuidado e sagacidade, perceberemos que Júlia não estava sofrendo por estar desejando e invejando o poder pessoal do “alecrim dourado”, ela estava lidando com as feridas emocionais profundas causadas pelos golpes que o machismo e misoginia causa nas mulheres, presa nas armadilhas do patriarcado, lidando com a prateleira amorosa, escassez de afeto, autoestima atrelada à receber atenção de um homem e rivalidade feminina.


Em relação ao seu pai, ele se omitiu não por um “acordo espiritual kármico” e sim porque havia uma mulher (mãe, avós, tias, etc) prontas para fazer o que ele não fazia, ele contava com o privilégio de poder explorar mulheres e Júlia teve que pular etapas, desenvolvendo um senso de maturidade, autocontrole e responsabilidade (solidarizando-se com a exaustão da mãe e tentando protege-la e poupa-la de mais demandas) deixando de ser cuidada pelo pai em um momento em que precisava de cuidado, proteção e orientação. Isso definitivamente não é conexão com poder pessoal, é abuso, é violên.cia masculina normalizada.


Se o acordo kármico fosse conectar Júlia com seu poder pessoal, o desfecho seria ela ter um pai presente, se responsabilizando por sua parte na criação dos filhos, liberando sua mãe para descansar, se cuidar, ter tempo para outros interesses e atividades, mostrando para as filhas a referência do que é ser um homem adulto e equilibrado, que ama e respeita mulheres.

Infelizmente, esse “guru” que conseguia ver as doenças no corpos das pessoas e supostamente cura-las (logo, poderoso, e por conta disso um tanto protegido de questionamentos e críticas) curiosamente, apesar de sua “visão de raio X”, não conseguia enxergar os códigos da masculinidade tóxica nas quais ele também estava inserido.


Por esse incidente, podemos perceber que terapeutas, aqui podem ser desde gurus que trabalham o campo da espiritualidade ou até mesmo psicoterapeutas renomados e com pós doutorado em suas áreas (o foco é observar como o poder perpassa todas essas relações, influenciando os diálogos, os silenciamentos e normalizações de violên.cias), até mesmo mais cuidadosos e bem intencionados, quando não estão conscientes de seus privilégios, sem o devido letramento em questões de gênero e raça (neste caso, o foco foi na questão de gênero, mas o mesmo raciocínio se aplica a questões raciais) podem facilmente revitimizar pacientes, causando danos ainda mais graves e que podem pôr a perder processos terapêuticos.


Marina De Martino

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