Você tem necessidades proibidas?

Era verão e eu estava hospedada em um hostel na praia.
Uma menina de aparentemente uns 4 anos brincava animadamente no parquinho com outras crianças, até que em algum momento houve um conflito, ela começa a chorar e procura a mãe.
A mãe imediatamente manda ela parar de chorar: “silencio, engole o choro, não foi nada...” (não estou questionando a conduta da mãe, ela podia estar cansada, sem apoio, não saber acolher o choro, etc., o foco que quero abordar aqui é o ponto de vista da criança).
A menina com muito esforço para de chorar.
Eu imaginei que em seguida ela pediria alguma coisa para a mãe, o que de fato aconteceu. Sou vidente? Não, logo mais explico melhor como eu pude prever isso.
Então, a menina pediu água e logo depois começa a brincar com a água ao invés de beber, a mãe pede para parar e ela não para, o que acarreta ainda mais tensão nessa interação até que o incidente se encerra com tapas e mais choro.
Para mim, que olhava de fora, era evidente que a menina estava cansada depois de um dia inteiro brincando na praia, teve um momento difícil de conflito com outras crianças e precisava de atenção e acolhimento para lidar com tanto incômodo.
Como ela não recebeu a atenção e acolhimento que precisava em forma de um abraço, escuta, espaço para poder chorar e lamentar sua dor, ela encontrou algum outro modo “aceitável”, do ponto de vista do adulto, para receber o que precisava, pedindo água, mas como a necessidade por traz desse pedido não era sede, ela não bebeu.
Por isso que mencionei lá no início do texto que era previsível que após uma tentativa de silenciamento viesse um pedido.
É curioso e triste como nós temos certa resistência em validar necessidades mais abstratas, como atenção, carinho, escuta, acolhimento, etc. Elas são quase que automaticamente tachadas de birra ou manipulação, enquanto necessidades concretas, como água, comida, higiene, sono, etc. são supostamente mais legítimas. E as crianças sabem muito bem disso. Como podemos ver, uma criança de 4 anos já entende essa lógica.
Laura Gutman em a Maternidade e o Encontro com a sombra chama a atenção para o que está por traz dos pedidos insistentes por doces que as crianças fazem. De acordo com ela, que a criança pede para o adulto não é o doce em si, mas atenção, presença e companhia. Por essa lógica um “não” para um pedido de uma bala, pode ser contornado com passar um tempo de qualidade com a criança.
Um outro caminho bem comum dentro dessa dinâmca é ficar doente, pois assim podemos validar necessidades como descanso, autorregulação, tempo de qualidade, toque, cuidado, carinho, etc.
O risco dessas trocas não é apenas o de não sabermos mais o que motiva nossas escolhas, mas sermos empurradas para uma compulsão.
Quando comemos porque temos fome, nosso corpo em certo momento nos informa que está saciado e paramos de comer.
Quando comemos porque temos fome de carinho, celebração, acolhimento, conforto, etc., não ficamos satisfeitas, porque não é alimento que precisamos, então continuamos comendo, comendo, comendo, e a sensação de saciedade nunca chega.
Você pode observar isso na sua própria experiência. Quantas vezes você substitui necessidades “proibidas” por comida, compras, álcool, drogas, estudo, exercícios, trabalho, sexo, etc.?
O que aconteceria se você pudesse reconhecer essas necessidades como legítimas e fizesse algum movimento para atende-las?
Marina De Martino
Facilitadora de grupos de Comunicação Não-Violenta e Justiça Restaurativa.