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Carta de um pai arrependido a uma filha

Minha filha, somente hoje, depois de muitos anos, eu reconheço eu errei com você. Quando você era adolescente, eu te falei palavras grotescas, vulgares, que jamais um pai deveria falar para uma filha. Eu sei que houve pessoas que te disseram para relevar, porque eu era seu pai, porque homem é assim mesmo, porque manter a harmonia familiar é mais importante, afinal, as mulheres são educadas para manter os homens confortáveis, mesmo que isso custe a integridade e física e saúde mental delas.


Nessa época, quando eu percebi que você estava se tornando uma mulher, eu me dei conta também de que você estaria exposta às mesmas violações e abusos que eu pratiquei contra todas as mulheres que me amaram.


Tive medo que se eu não te avisasse a tempo, você pagaria por mim, com sua dor, toda dor que causei nessas mulheres, como a concretização de um karma. Como te avisar que os homens praticam atrocidades com as mulheres, sem que você tirasse a conclusão errônea de que você não era digna de ser amada por um homem (eu sei, a feminilidade patriarcal, e portanto tóxica, na qual você está imersa, te disse desde que você nasceu, que a sua maior realização seria ser escolhida e amada por um homem).


Só que esqueceram intencionalmente de te avisar também que os homens não são educados para amar mulheres. O desamor não era, nem nunca foi por sua causa, nunca teve nada de errado com você. Aquela sacanagem daquele rapaz, que você conhecia desde criança e depois veio a se apaixonar quando adolescente, também foi cruel, ele te colocou na prateleira do amor, te arrastou para o jogo da rivalidade feminina e te mantinha presa quando te dava migalhas de atenção e afeto. Essa é uma das armadilhas sutis, porém mais devastadoras, que os homens que não amam mulheres usam contra elas.


Eu queria te apoiar, te ver crescer livre e independente, como a mulher inteligente e sagaz que você estava se tornando e ao mesmo tempo me agarrava fortemente a esses códigos da masculinidade patriarcal tóxica na qual eu também estava imerso. Você escancarou para mim que eu tinha que escolher entre ser um homem íntegro, respeitoso, que ama mulheres, mas que ao fazer isso não é respeitado nem valorizado pelos outros homens, ou me manter com os mesmos padrões disfuncionais, que me conferiam algum parco valor e me conectavam aos outros homens. É claro que eu preferia não ter que rever meu comportamento, não ter que sair da zona de conforto e de continuar exercendo um poder disfuncional sobre mulheres.


Para a maioria dos homens, exercer poder sobre as mulheres é a única forma de se sentir com algum valor. Eu sei que te disseram para considerar isso e relevar também, mas eu repito: você não tem que aceitar violações para deixar nenhum homem confortável, você não tem que se diminuir ou se limitar para não intimidar ou não diminuir homens.


Como tratar com humanidade e respeito aquela mulher em formação, tão vulnerável, quando eu tinha para mim que mulheres são seres violáveis e de menos valor? Eu sei que te falaram para relevar isso, para entender meu lado, que era o choque de gerações, que eu não ia mudar.

Você precisava ser cuidada e apoiada, como todo ser humano em desenvolvimento e quando você percebeu que eu além de não estar cumprindo meu papel de pai, estava começando a violar os seus limites, você se afastou de mim e disse que só se aproximaria de mim de novo quando eu começasse a fazer terapia.


Eu te julguei, te julgaram, te patologizaram, e assim, eu não precisei rever meu comportamento disfuncional, nem fazer a terapia, que era mais do que necessária e quem acabou indo para a terapia foi você. É assim que as mulheres são hiper-responsabilizadas pelos erros masculinos.

Você com seu faro aguçado, percebeu que a forma como eu agia com você tinha características de um relacionamento abusivo e se afastou. Sabe esse faro aguçado, que dizem que é sexto sentido, na verdade é um mecanismo de defesa, que as meninas precisam desenvolver desde cedo, antecipar o perigo, principalmente a maldade de homens.


Certa vez vi uma frase de quem não sei a autoria, que dizia que toda mulher adulta é uma menina que sobreviveu. E aquelas meninas que tiveram o azar de crescer em lares em que amor e agressão não se diferenciavam, sobreviveram sem desenvolver plenamente esse faro, são as que quando adultas, podem acabar ingenuamente se entregando aos seus algozes. Como aquele pai te que disse que era duro na forma como castigava a filha, porque o mundo lá fora vai ser duro com ela, então ela já estava aprendendo desde cedo a ser forte... pelo menos nesse aspecto não errei, você aprendeu a diferenciar amor de agressão, apesar de muitas vezes eu e as pessoas a sua volta te induzirmos a duvidar da sua percepção e você se sentir confusa.


Mas você, tão jovem, não precisava ter feito tudo isso, era uma carga mental e emocional intensa demais, você não precisava ter começado a trabalhar tão cedo, nem fazer o trabalho de gestão emocional familiar que era minha responsabilidade, como adulto da relação, você não precisava ter vivido em constante estado de alerta, pronta para se defender de ofensas verbais ou físicas, você não precisava ter rejeitado e até mesmo odiado os aspectos que a sociedade considera femininos em seu ser.


Eu era o adulto da relação, era minha responsabilidade rever a forma como me relacionava com as mulheres. Era minha responsabilidade rever minhas atitudes como pai. Era minha responsabilidade gerenciar meus estados emocionais, dos meus filhos e ser apoio e parceiro de sua mãe.


Eu falhei. Hoje não é mais possível reescrever o passado, então, o que posso fazer é te dizer que reconheço e lamento profundamente meus erros e pedir perdão. Faço isso pela relação entre você e eu. Faço isso pelos pais que vieram antes e os que virão depois de mim. Que todas as filhas dentro do patriarcado possam receber de seus pais os sinceros pedidos de perdão e o compromisso deles pela construção de uma relação mais amorosa e respeitosa com as mulheres.


Essa é uma obra de ficção, qualquer semelhança com histórias reais não é mera coincidência, é o patriarcado.


Marina De Martino

Facilitadora de Grupos de Comunicação Não-Violenta e Justiça Restaurativa

Atendimentos individuais, casais, famílias, escolas, empresas, ongs

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