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Os discursos sobre autoconhecimento, espiritualidade e coletividade que podem mascarar violências

Eu já participei de diversos grupos com foco em espiritualidade e também morei por muitos anos em uma casa comunitária urbana, tive muito contato com pessoas de outras comunidades e com trabalhos de autoconhecimento e infelizmente já vi muitas viol.ências e ab.usos acontecendo nestes meios, o que é bem problemático, pois é mais difícil ainda nomear e abordar esses desequilíbrios quando eles estão disfarçados por discursos que supostamente valorizam a equidade e o cuidado coletivo.


“O universo é abundante”,

“tem para todo mundo”,

“é dando que se recebe”,

“você atrai o que vibra”,

“as ameaças estão dentro”,

“não se perde o que não se tem”,

“somos todos um”,

“quem obedece não peca”,

“não vejo cor vejo humanos”,

“não sou feminista sou humanista” e por aí vai...


É evidente que vivemos em uma cultura que exacerbou tanto a disputa, a competição, o individualismo, que precisamos fazer esse caminho de volta urgentemente e cultivar esses ideais. Ao mesmo tempo não podemos ser ingênuos, estamos tão imersos nessa lógica do individualismo e da competição, que mesmo querendo de verdade ser comunitários, reproduzimos inconscientemente as opressões e violências internalizadas por anos de condicionamento e é preciso estar atento a isso.


Um exemplo muito comum é o do guia ou terapeuta tão elevado espiritualmente que ninguém pode contestá-lo: se você não concorda com o que ele fala, é porque você


“não tem a visão”,

“você ainda não evoluiu o suficiente”,

“ele está tão à frente do seu tempo que é difícil mesmo compreender o que ele fala”,

“você se incomodou por causa do seu ego/eu inferior e tem que fazer mais terapia para se curar”, “é deus quem fala através dele”,

“são leis universais e imutáveis para todos os seres humanos”,

“se você não seguir elas leis, preceitos, ações, etc. a sua vida não vai andar para frente” etc.


Logo se essa figura que tem tanto poder e visão fala algo que você não concorda por ser machi.sta, rac.ista, abu.sivo, etc ou se ele fala que tem algo errado com você, que você tem inveja, baixa autoestima, compulsões, arrogância, pecados, quem é você, reles mortal inconsciente e pouco evoluído, para questionar?


Contraditoriamente, um dos ensinamentos bem comuns dos “líderes/gurus/terapeutas” é apreciar e agradecer, mas raramente os vi apreciando e ressaltado as qualidades positivas os seus seguidores na mesma proporção ou mais do que o tanto nomeiam e apontam os pecados e problemas a serem curados com terapias (que curiosamente muitos deles vendem a preços exorbitantes).


O que infelizmente já vi em consequência disso é a tendência do discípulo fazer o que o mestre faz, e começar mesmo que de forma inconsciente, apontar e tentar curar o suposto “eu inferior” dos outros, sem treinamento para isso e sem que tenha sido solicitado. Uma fonte desentendimentos e prejuízos enormes para muitas relações.

A palavra autorrespondabilidade que é bem comum nesses meios também é um ponto a ser questionado, ela tem o seu fundamento, mas quando usada indiscriminadamente, coloca a causa dos problemas do indivíduo apenas nele mesmo, invisibilizando outras variáveis, entre elas as questões relativas a violências estruturais e culturais, que interferem diretamente no bem-estar individual e coletivo.


Um exemplo bem claro disso são os terapeutas que trabalham com o público feminino, dizendo que as mulheres são responsáveis pelos relacionamentos “que atraem”, que se não estão conseguindo bons resultados é porque estão com excesso de energia masculina, estão vibrando “errado”, não fizeram o bom ritual ou as terapias corretas, etc.


Mas esses mesmo terapeutas não questionam o porquê da centralidade do relacionamento amoroso na vida e autoestima da maioria das mulheres, também não dizem que é praticamente impossível estabelecer um relacionamento saudável em uma cultura machista que ensina a homens que mulheres são seres inferiores, produtos hipersexualizados a serem consumidos ou estupr.áveis e com obsolescência programada ( mulheres após uma certa idade não são mais consideradas “de valor” para grandes empresas e veículos de comunicação que propagam e lucram com o ideal inalcançável da juventude eterna, bem como para certos grupos de homens que propagam cada vez mais miso.ginia explícita na internet).


Com esses filtros em nossa percepção, ao mesmo tempo que nos colocarmos em uma posição perigosa de arrogância e superioridade moral/espiritual em relação à pessoa que nos questiona ou nomeia um dano ou risco iminente causado por nossas ações/ensinamentos, também ficamos “confortáveis e autorizados” para não ouvir e deslegitimar seus pedidos e necessidades, retroalimentando o ciclo da violência.


No fim, todos perdem, pois essa postura não permite enxergar e compreender além dos limites de nossas próprias crenças e experiências.

 

Marina De Martino

Facilitadora de grupos de Comunicação Não-Violenta e Justiça Restaurativa

 

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